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E se gritar pega ladrão…

As duas ONG’s que estamos trabalhando atendem o mesmo perfil de pessoas: situação de rua e/ou violência doméstica. A diferença entre elas é a faixa etária. Enquanto a primeira atende adultos, que por sua vez chegam à ONG com as próprias pernas em busca de ajuda e melhores oportunidades de vida, a segunda trabalha com crianças que por sua vez não entendem tão bem a realidade em que se encontram.

Nas últimas semanas temos presenciado acontecimentos um tanto quanto difíceis de engolir, tais como crianças de 10 anos que tem os irmãos adolescentes como referência e nenhum tipo de educação sexual e acham natural tocar na bunda ou nos seus de uma mulher, porque afinal é assim que se namora. Ou meninas de 8 anos que falam com toda naturalidade do mundo que na noite anterior dormiram no chão, já que não possuem cama e sempre dormem com a mãe, mas justo naquela noite a mãe se incomodou que a menina se mexia demais e tinha acordado o bebê, que também dorme na mesma cama. Dormem mãe e duas filhas na mesma cama.

São muitos acontecimentos simultâneos e um em especial tem incomodado mais que os outros.

Júnior é uma criança de 12 anos e apesar de toda dor de cabeça que as vezes causa, é adorado por todos, inclusive por sua mãe Maira. Para que uma criança comece a frequentar o Projeto Repique, é necessário que a sua família esteja de acordo, assim o trabalho é expandido aos familiares e faz com que as coisas aprendidas na ONG sejam também praticadas em casa. Na teoria é assim, mas infelizmente na prática a coisa muda um pouco de figura. Júnior é filho de um presidiário e uma usuária de drogas, assim como nossos pais nos ensinam moral e boas maneiras, os pais de Júnior o ensinam a roubar e se drogar, afinal, essa é a realidade que eles conhecem.

Na última semana Maira levantou a bandeira branca e pediu ajuda. Sua casa estava sem água e luz há mais de 2 semanas e ela já não aguenta mais essa sensação de inércia da vida. Seu pedido de ajuda seria perfeito senão fosse por um pequeno detalhe, ela gostaria de ir sozinha, o que significa que seu filho Júnior seria ‘abandonado’ por um tempo.

Como era de se esperar, o filho reagiu mal a tudo isso, culpou a ONG por ter sido abandonado pela mãe e durante alguns dias se revoltou. A mãe voltou atrás e decidiu que ir com o filho era realmente a melhor opção.

No último sábado ia rolar uma atividade na praça que fica próxima a ONG. Construiríamos traves pros meninos poderem jogar futebol. Infelizmente devido a feira que acontece todos os sábados, não tivemos permissão da prefeitura para passar com a caminhão e a atividade foi cancelada, o problema é que o sms que nos avisaria não chegou, então sábado as 9 da manhã estávamos lá.
Julia, Marcelo e eu aproveitamos que a atividade não aconteceria e para não perder a viagem fizemos as comprar da semana lá mesmo. Enquanto esperávamos Julia escolher seus pêssegos semanais, vimos Júnior e Dustin (seu tio, apesar de ambos terem a mesma idade). Os garotos se aproximaram, nos cumprimentaram e logo em seguida foram em direção de Julia. Nesse meio tempo o senhor da banca de frutas vira em nossa direção e diz: ‘ojo que son ladrones’. Respondemos que conhecíamos eles e que estava tudo bem. Ojo aqui no Uruguai é usado para ressaltar alguma coisa e nesse caso foi usado com o sentido de ‘cuidado’.

Essa frase ecoou na minha cabeça pelo resto do dia. Fiquei me perguntando quando foi que aquelas pessoas pararam de enxergá-lo como criança e passaram a enxergá-lo apenas como o ladrãozinho do bairro.

Será que algumas daquelas pessoas que seguram a bolsa contra o corpo quando esse garoto está passando, já pararam pra pensar nas condições que ele foi exposto pra hoje virar o ladrãozinho da feira? Já pensaram na falta da estrutura familiar, do carinho familiar, da ajuda e apoio familiar? Será que quando levantamos o vidro do carro no farol para afastar os possíveis trombadinhas, nos damos conta da complexidade que possa ser a vida deles? Será que ele não gostaria de estar e ter o que nós temos?

Vivemos num mundo onde tudo vem e vai, rápido e superficial. Enquadrar pessoas nós traz uma falsa segurança para justificar nossos próprios atos. Nos permite colocar a cabeça no travesseiro todas as noites e dormir tranquilos com a certeza de que estamos fazendo nossa parte.

Mais do que estereotipar e apontar o dedo, essas crianças precisam de ajuda. Precisam de bons exemplos já que suas vidas estão repletas de más condutas. E acima de tudo, necessitam de pessoas que lhes tratem e eduquem como criança, longe de ser juiz inquisitor alertando que o ladrão está na área.

Como Caetano diz ‘cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é’. Só essas crianças sabem os fantasmas que os assombram todos os dias, e os que continuarão os assombrando durante toda sua jornada, seja ela continuar afanando coisas na feira ou não.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Caramba amiga que pesada essa história e que orgulho da amiga maravilhosa e desprendida de tudo que eu tenho! O texto ficou animal de emocionante!!! Parabéns pelo trabalho e pela pessoa q vc é!!!

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